A pandemia pôs a nu uma situação de exploração intensiva e extensiva de trabalhadores agrícolas no concelho de Odemira.
Frases como esta, ou outras com o mesmo significado, foram repetidas inúmeras vezes ao longo da última semana a propósito da situação dos trabalhadores imigrantes que prestam trabalho nas explorações agrícolas daquele concelho e que sobrevivem acantonados em alojamentos sobrelotados, sem condições de salubridade e pelos quais ainda pagam uma renda como se de uma habitação se tratasse, muitas das vezes à própria entidade patronal que os contrata.
A frase inicial até fazia sentido se fosse possível desconhecer uma situação que dura há anos e que mobiliza, nalgumas alturas do ano, mais de uma dezena de milhar de trabalhadores.
A pandemia não colocou nada a nu. Apenas tornou impossível assobiar para o lado e fingir que ninguém tem nada a ver com isso e que se trata apenas de um problema de mercado de arrendamento ou de uma ou outra situação de escravatura.
De repente descobriu-se aquilo que há muito se sabia. Que existem patrões que descontam o valor do metro quadrado do alojamento no salário do trabalhador, que há trabalhadores contratados por intermediários e colocados à disposição de empresas, que há trabalhadores que pagam para sair dos seus países de origem a traficantes de mão-de-obra e que são obrigados a partilhar o seu salário com o traficante.
Há trabalhadores migrantes sem “papéis” (recuso-me a dizer ilegais porque recuso a ideia de que a existência de uma vida é ilegal) e a viverem na maior das precariedades longe das suas famílias.
Ao longo destes dias foram ouvidos representantes das mais variadas instituições, desde a associação de agricultores à amnistia internacional e é espantoso como se pode fugir a classificar o que está à vista de todos recorrendo a todos os cuidados que a língua portuguesa permite.
Ouvi na rádio pública um dos agricultores a defender com unhas e dentes o modo de produção que garante milhões de euros (perguntou mesmo se o país se poderia dar ao luxo de perder tal receita) dizendo que as situações relatadas não eram a regra e que os empresários prevaricadores deviam ser investigados e talvez punidos.
Talvez? Eventualmente? Devagarinho? Com uma admoestação?
Também ouvi alguém indignado a falar de situações de escravatura, acrescentando que será preciso esclarecer quem está obrigado a essa situação.
Não estar obrigado a, implica uma possibilidade de escolha e estes trabalhadores não têm essa possibilidade. A sua escolha é entre o lume e a frigideira.
Que sociedade esta que de forma tão ligeira trata um problema tão grave que afecta a dignidade de seres humanos?
No meio disto tudo e quando se tornava insuportável para alguém com um pingo de decência não sentir a raiva e indignação pela sorte daqueles trabalhadores, avança para a liça a Ordem dos Advogados a clamar pela defesa dos direitos humanos dos proprietários de uns bungalows instaladas num parque de campismo que, entretanto, o governo requisitou para responder às situações mais prementes.
E este nó no estômago que não se desata.
Até para a semana