Já tinha a crónica pronta, quando o Luís Carmelo partiu para aquele lugar onde vai continuar a ficar na memória de muitos, mesmo muitos, e na saudade dos mais próximos, que vão ser muitos mais do que ele pensaria. E esses muitos farão muito melhores elegias do que eu saberia fazer, porque o Luís viveu rodeado de Poetas e de Leitores e amantes da Literatura, marcados por ele. Com o Luís, entremeei ultimamente a conversa que nasceu para além das iniciais sobre livros e leituras, e que rondou à volta das nossas experiências na vida política local. O Luís, cidadão inteligente, quase fez um lacónico e profundo haiku sobre o assunto. Concordámos. Acabou ali a conversa e regressámos ao que nos fazia felizes: conversar sobre Literatura. Ele vai continuar, porque nos fez seu leitor e quando o lermos vamos ouvi-lo. Ele não. Eu decidi continuar a limar a crónica, apesar da desolação da sua ausência. Há muitas formas de lutar contra o fim. E por isso aqui vai ela.
Que 25 de Abril este! Quente, tenso, reclamado, aproveitado, espremido, festejado, parasitado, cantado, treslido e talvez ainda mais adjectivado se nos pusermos a pensar nesta ou naquela pessoa, em tal ou a qual facção se reagiu no frenesim mediático. Até os que dizem que não lhe ligam nenhuma, como há quem diga do Natal, não podem dizer que não se deu por ele, tal foi a converseta que gerou e o que durou o after-party, contaminado pelo caso mais badalado que, pairando no ar, alterna com qualquer outro assunto. E já não falo da cena à Big Brother nos bastidores do Parlamento em que até a ARtv parece estar a deixar-se cair. Falo do folclore criado à volta e no rasto da Comissão de Inquérito à TAP, que até enxovalha a importância democrática que estas comissões têm, e que não me convence de que não são apenas mais uma desculpa para, aproveitando as evidentes asneiras, carregar na penitência que, como sabemos, é sempre mais atraente de espectadores do que o correr diligente dos dias.
Foi, de facto, numa pantomina que se tornou o rescaldo no resto da semana e fim-de-semana prolongado seguinte a este 25 de Abril, cujas comemorações me têm sempre interessado sobretudo pelos discursos. Este ano os Presidentes – de duas Repúblicas e de um Parlamento – foram protagonistas de uma peça em que tiveram de contracenar com bufões habituados ao vaudeville. Mais uma vez, Marcelo fez-me o favor de lhe agradecer, excepcionalmente, o discurso que acerta contas com o Passado, pelo tema da vergonha colectiva que foi o tráfico humano a que se chama normalmente escravatura e que deixou profundas sequelas nas sociedades e a que se chama, seja qual for a escala do espectro, racismo. Mas também a denúncia, subtil é certo, ao ódio instalado por imigrantes. Quase me fez esquecer o quanto lhe continuo a atribuir uma grande parte da culpa do ambiente político estragado, como muito bem identificou Augusto Santos Silva no seu inteligentíssimo discurso, ao falar de sofreguidão, com a qualidade, aliás, de que nunca duvidei. E Lula fez o discurso que tinha de ser feito por quem anda na dura tarefa de reconstruir o que desabou no Brasil às mãos de Bolsonaro.
O que ficaria das palavras e dos silêncios usados com elevação, com sentido e intenção, em cerimónia que é exemplo a dar do funcionamento das instituições e da própria Democracia, depressa se contaminou com a histeria no Parlamento e o desacato, dias depois, em Ministério. Faz isto parte do destrambelho, da arruaça e do abandalhamento que, com todo o à-vontade, parecem estar a aplicar-se não apenas à reacção, como logo à actuação de quem trabalha na Política. E que têm como objectivo, ou acabam por contribuir para ele, de fazer ruir a Democracia.
Tenho a sorte de ter vindo a aprender a traçar algumas linhas vermelhas na minha vida em sociedade, talvez a única vantagem de envelhecer com uma certa calma, sem surpresas, aceitando o passar do Tempo, tão democrático. Linhas que se traçam, por exemplo, com o convívio estritamente necessário com quem não se tenha confiança, tendo, em alternativa, uma certa cerimónia como a boa cor a dar à linha. Para que o quotidiano flua contornando os inevitáveis obstáculos, poder não se ficar presa a quem se desleixe ou se descontrole, sem domínio sobre si, é um descanso. É uma espécie de possibilidade de escolher quando ir mais depressa ou quando ir mais longe, consciente de que a justaposição, ir mais além já a seguir, será, isso sim, um brinde de que não estamos à espera.
Neste 25 de Abril, na titubiante maturidade que significa o iniciar-se o ano do 50º aniversário desse dia maior, não restam dúvidas sobre o que não faz bem à Democracia. E se não faz bem à Democracia, mais cedo ou mais tarde, não fará bem a cada um dos muitos milhões que somos a viver em Democracia, resgatados de sistemas autoritários que sabemos bem piores, por memória de experiência cada vez mais intergeracional que se transmite pela palavra e pelo exemplo. Turbulências de crescimento como as dores adolescentes que individualmente sofremos e não nos impediram que crescêssemos. É prosseguir, com mais atenção e cuidado, como o que damos ao que estimamos. (Ou, em caso contrário, fazer como na lição do quase haiku do Luís Carmelo perante a desilusão.)
Até para a semana.