Até amanhã

Crónica de Opinião
Quinta-feira, 20 Abril 2023
Até amanhã
  • Nuno do Ó

 

Às zero horas e vinte minutos do dia 25 de abril de 1974, uma canção de José Afonso seria o sinal da irreversibilidade de uma marcha revolucionária que durante aquela madrugada libertaria Portugal de uma ditadura opressora que já durava há longos 48 invernos.
Essa marcha de capitães e soldados, e depois do povo, ficará para sempre conhecida como a Revolução dos Cravos. “Grândola, Vila Morena” seria o tema escolhido para o sinal que tornaria irreversível a marcha sobre Lisboa.
O tema de José Afonso, com o inesquecível arranjo de José Mário Branco, foi então transmitido com cobertura em todo o território nacional no programa Limite da Rádio Renascença, já madrugada dentro, e a sua condição de canção com um texto claramente político e revolucionário, na voz de um autor proscrito, associada que era a todos os que lutavam pela libertação, daria a certeza de que já não haveria retrocesso possível e que a revolução estava em marcha.
Todos conhecemos esta canção. Escrita na sequência de um concerto realizado na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, a 17 de Maio de 1964, reflete na sua grande medida, a profunda impressão que esta passagem por Grândola deixou em José Afonso, designadamente pela forma igualitária como as pessoas se relacionavam na organização desta sociedade recreativa e que de alguma forma, representava os termos idealistas de organização que o cantor defendia para o seu país.
Naquela inesquecível madrugada, por entre cravos e lágrimas, quase todos voltaram a sonhar a liberdade e a igualdade entre todos e entre todos os povos, como um sonho feliz e realizável. Foi essa esperança impagável que Abril nos trouxe e por isso mesmo, não esquecemos nem deixaremos esquecer.
Não esquecemos a nossa profunda dívida para com todos aqueles, que na grande noite da ditadura e da repressão, com uma mão cheia de quase nada e a outra de coisa nenhuma, apenas com uma pequena réstia de esperança, como um grão de areia cuja praia lhe falta, nunca deixaram de lutar por aquele dia imaginado, em que alcançaríamos a liberdade tão desejada, numa única missão de vida, mesmo para aqueles que não chegaram a ver essa felicidade, porque nos deram a própria vida por ela.
Aos seus corpos tombados, demos os nossos braços para voltar a agarrar na amarra da liberdade, que não deixaremos fugir. Por mais que a corrente puxe, cá estaremos, braço a braço, mão a mão, transportando nas costas esse legado dos nossos camaradas, que levantámos do chão e que carregaremos, porque a eles, especialmente a eles, devemos tudo, a nossa liberdade, a democracia.
Por mais que alguns nos queiram brigar a esquecer.
Também não nos esquecemos dos que estavam e estariam do lado dos opressores. A democracia perdoou-lhes, mesmo àqueles que estavam diretamente ligados à ditadura e aos crimes que nela praticaram ou que deixaram praticar. Bem sabemos que lá estavam e que lá voltariam se pudessem ou se os deixássemos.
Com os ventos frios da extrema-direita e dos neofascismos a soprarem de novo na Europa, é bom que nos façamos relembrar daquilo que bem sabemos e que muitos insistem em apagar, saudosamente. Não esquecemos a PIDE, o Tarrafal, a tortura do sono, a prisão política, os bufos e as perseguições, a guerra, o colonialismo, os turras, os assassinatos. Não esquecemos o general sem medo, os capitães de abril, nem Salgueiro Maia. Lembraremos sempre a luta nas palavras do Zé Mário, do Zeca, no legado de coragem e de integridade de Manuel Tiago ou nos punhos erguidos a grafite pelo Álvaro.
Não esquecemos e estaremos sempre prontos a lutar contra a opressão, a injustiça, a ditadura, contra os que insistem em subjugar, em explorar, desavergonhadamente. Continuaremos a cantar onde a voz se julgue necessária e imperiosa, com o canto livre, onde quer que um abraço chegue por si mesmo ao fundo da alma, em qualquer esquina e se necessário for, no sótão da casa do Chico ou na oficina do Meira.
Assim mesmo, já para a semana, cantaremos em coro a Grândola, como sempre. E todas as outras canções que nos ergueram e que nos trouxeram para o dia mais belo.

Porque Abril não se esquece.

Até amanhã camaradas.

 

 

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