Inédito

Crónica de Opinião
Quinta-feira, 04 Maio 2023
Inédito
  • Nuno do Ó

 

 

Na edição do passado dia 11 de abril, o Jornal i surpreendeu com a edição integral do designado Primeiro jornal no mundo feito (quase) sem intervenção humana. Trata-se de um jornal feito sem a participação de pessoas, realizado por um sistema de inteligência artificial, ou seja, por um computador que pesquisa, escreve, agrupa e faz a montagem das notícias do dia num suporte que os humanos possam ver e ler, no caso, um jornal.
No editorial do jornal, escrito pelo seu único redator, o tal computador, pode ler-se:
Escrever textos para jornal no ChatGPT é uma tarefa que envolve a geração de conteúdo relevante, preciso e atraente para o leitor. Confirma-se, digo eu. Como modelo de linguagem avançado, posso gerar textos, em diferentes estilos e formatos, como notícias, reportagens, análises e opiniões. Também, digo eu. Além disso, posso utilizar informações de fontes confiáveis para garantir a veracidade do conteúdo. As tais fontes confiáveis, as de sempre e as dos mesmos.
O Chat GPT, fundado por Elon Musk, sabe-se lá porquê, é um modelo de linguagem baseado em tecnologia de inteligência artificial, ou seja, é criado num programa de computador, com equações e algoritmos próprios, que conseguem “aprender” a conversar e a interagir com um outro interlocutor humano. Também conseguem responder ou escrever textos. Digamos, é o estado da arte daquilo que já vamos vendo nos nossos telemóveis, quando lhes pedimos para efetuar uma operação, ao que o telemóvel obedece e até responde. Digo eu, Liga ao Chico da Adega, ao que o telemóvel responde, a ligar ao Chico da Adega. Enfim, tal como a aquela menina ou menino do GPS que nos envia para todo o lado, sem erros e dizendo o nome das ruas corretamente.
É isto, mas melhor, ao ponto de já ser possível escrever um jornal inteiro sem intervenção… de jornalistas! O exemplo desta edição será sofrível, mas se olharmos para o que na temos na imprensa escrita por esse país fora, parece bastante aceitável, nos padrões atuais da indústria.
Claro está que isto levantou importantes questões, no meio e junto dos comentadores habituais. O mundo novo que se abre pelos grandes avanços tecnológicos, que aqui como noutras áreas, parecem comprometer o papel do homem e no caso, do jornalista. Um pouco como os livros digitais que vinham acabar com os livros em papel, ou a televisão que iria acabar com a rádio e por aí fora. Já sabemos que a invenção destas ferramentas, que é do que se trata, não puseram nem deverão por em causa a existência do homem, talvez apenas modificar a forma como se vive, que será diferente da de amanhã, tal como é diferente da de ontem.
Nada disto vem condicionar os problemas de fundo da sociedade humana. Estas tecnologias continuarão a permitir a exploração de uma grande parte da humanidade por outra pequeníssima parte. Também permitirão combater a injustiça e a exploração. Porque o problema não está aí. Não foi por inventarmos a visão noturna que as drogas não continuam a circular em força e a alimentar uma boa parte dos ricos do mundo, todas as que conhecemos, os petróleos, os futebóis, as negociatas, os grandes grupos de multimédia, os donos disto tudo.
Para esses, tudo deverá continuar na mesma. Nada mudará nos jornais com estas novas tecnologias, porque, se não repararam, há muito que tudo mudou. Com honrosas e notáveis exceções, raras por natureza, há muito que não há jornalistas nas redações, apenas autómatos escritores, alimentados por uma agenda política e por opiniões condicionadas, que aqui lhe chamam algoritmos. Há muito que se recorrem às mesmas fontes pré-mastigadas a que o computador também se vai alimentar.
Poderemos sim concluir, que o jornalismo que se pratica na atualidade é tão mau que qualquer máquina o consegue reproduzir, para gáudio dos grandes grupos económicos que apenas pretendem controlar a opinião das massas e talvez até venham a poder prescindir dos jornalistas a soldo que têm para o efeito, os humanos chantageados, que vão alimentando estes monstros, em troca da sobrevivência…
Assim se explica os muitos que não sobreviveram. Jornais e jornalistas. Assim se explica a pobreza que percorre a generalidade dos jornais por esse país fora. Assim se explica e há muito, os jornais sem jornalistas, os jornais com as notícias comuns e simplórias, disfarçadas de informação, copiadas da internet, das agências noticiosas. Assim se explica a sua unanimidade. Assim se explica porque não temos leitores. Assim se explica a desinformação. Assim se explicam as fakenews, a manipulação, a guerra, a insanidade, a extrema-direita, o populismo.
Porque há muito se deixou de fazer jornalismo, de questionar, simplesmente. A liberdade de imprensa é a lei dos grandes grupos económicos, a lógica do poder, que não quer saber da verdade. E não vão passar a saber com a inteligência artificial. Porque tal como as redações e os jornalistas, ela tem dono. Porque ela tem o poder e o capital. Porque as fontes e os algoritmos são os mesmos.
A não ser que nos importemos e queiramos lutar por um mundo melhor. Aí o que há a mudar é a atitude, não é a tecnologia.

Até para a semana!

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