O direito à cultura dos deveres

Crónica de Opinião
Quinta-feira, 27 Abril 2023
O direito à cultura dos deveres
  • Alexandra Moreira

 

Não nutro simpatia por Lula da Silva – que fique claro. Também não sou partidária da sugestão de o receber na Sessão Solene Comemorativa do Aniversário do 25 de abril. Simplesmente porque não me parece fazer qualquer sentido.
Recebê-lo no Parlamento, sim, com certeza, mas em outra sessão solene de boas-vindas ao legítimo Presidente do Brasil, devidamente autonomizada daquela outra.
A solução encontrada do “dois em um”, duas cerimónias seguidas, ambas de cravo na lapela e discursos condizentes, foi, a meu ver, um erro. Compreendo a necessidade de se resolver mais um imbróglio causado pelo Chefe de Estado, o nosso, ao convidar Lula da Silva para discursar na sessão parlamentar do 25 de abril, mas a via de compromisso entre o estar e o não estar saiu pior do que se simplesmente tivesse estado na sessão onde não chegou a estar.
Marcelo ainda forjou uma explicação dizendo que o 25 de abril tinha iniciado com a descolonização, antecipada pela independência do Brasil. Não fosse a distância de 150 anos entre esses marcos históricos e a ausência de convite aos Chefes de Estado dos países descolonizados e até haveria alguma lógica nesse rebuscado exercício presidencial…
Mas o que dá o mote a esta rubrica nem é a trapalhada protocolar de origem presidencial. Que a isso já vamos estando habituados.
O que se passou na Assembleia da República, com Ventura e seus sequazes a injuriar diretamente um Chefe de Estado, convidado para ali estar pelas duas maiores figuras do Estado português, ultrapassa os limites do inadmissível para se situar já em território ilícito.
Deputados, em plena Assembleia da República, empunhando cartazes com os dizeres “lugar de ladrão é na prisão” dirigidos ao Presidente do Brasil é, não só uma ofensa a esse Chefe de Estado, ao povo que o elegeu e à Justiça que o julgou, mas igualmente uma afronta à República Portuguesa, ao povo português e até, segundo creio, a grande parte do próprio eleitorado.
Contrariamente ao que tenho ouvido a muitos comentadores, Augusto Santos Silva não esteve bem na resposta. Esse grave incidente não carecia de mais um sermão inflamado e paternalista como se estivesse em causa só mais um desaforo, entre muitos, do habitual grupelho arruaceiro…

Desta vez não foi só a ordem que foi posta em causa. E nem Santos Silva nem o Presidente da República estiveram à altura de impor as responsabilidades de que também se faz a Democracia. Competia a ambos participar esses factos ao Ministério Público; competia a Santos Silva impor, com menos berros e mais pulso, a cessação imediata daquele comportamento indecoroso.
Um dos problemas das atuais democracias ocidentais, sobretudo daquelas que são jovens, que demoram a amadurecer ou que ainda digerem os traumas da opressão, é precisamente o de serem envergonhadas na definição dos limites aos direitos, liberdades e garantias. Essa incapacidade crónica, para além de gerar crescente hedonismo, é terreno fértil para os emergentes populismos que capitalizam a indignação dos menos avisados.
Enquanto povo, faz-nos falta promover a cultura dos deveres, a mudança do paradigma da liberdade indiferente para a liberdade comprometida. É que, sem isso, não há abril que sempre dure.
Até para a semana.

 

 

 

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com